A questão de Hong Kong aos olhos do especialista brasileiro

Fonte: Diário do Povo Online    30.12.2019 15h26

por Evandro Menezes de Carvalho

Não se pode querer compreender a China apenas com os olhos voltados para o presente sob pena de cometer uma série de equívocos históricos. E quando se trata da história contemporânea da China, encontra-se a luta de um povo para a reconquista de sua soberania que se dá com a fundação da República Popular da China, em 1949, e o esforço para promover o seu desenvolvimento econômico com os recursos de que dispõem. 

Mas por que falar em reconquista de soberania? Porque não se pode ignorar que no século XIX a China foi invadida por diversos países ocidentais e pelo Japão. As Guerras do Ópio, promovidas pelos britânicos, são um dos fatos mais evidentes dos atos de guerra do Ocidente contra o povo chinês e a sua soberania. Os chineses eram obrigados pelos britânicos a importar ópio, ou seja, droga. A humilhação se dava não só pelas armas, mas pelo comércio. Porém, por sob os escombros da destruição e humilhação provocadas pela violência estrangeira, os chineses tiraram as lições devidas e buscaram, em meio a erros e acertos, encontrar o seu caminho. E este caminho passava, necessariamente, pela defesa de sua soberania contra os abusos e a ganância estrangeira.

Uma das consequências das Guerras do Ópio para os chineses foi a perda de soberania sobre Hong Kong que passou a ser colônia britânica a partir de 1840. Trata-se de um caso de ocupação estrangeira sobre território chinês. Somente em 1984 é que os governos chineses e britânicos assinam uma Declaração Conjunta sobre a Questão de Hong Kong afirmando que o governo chinês reassumiria o exercício da soberania sobre esta parte de seu território em 1º de julho de 1997. O governo chinês faz de Hong Kong uma Região Administrativa Especial (RAE) sob o princípio de “um país, dois sistemas”. Isto significa dizer que: 1) Hong Kong teria um alto grau de autonomia e um poder judiciário independente dos poderes legislativos e executivo; e 2) o sistema e as políticas socialistas não seriam praticados em Hong Kong por um prazo de 50 anos, isto é, até 2047. É o que estipulam os artigos 2 e 5 da Lei Básica de Hong Kong que foi aprovada pela Assembleia Popular Nacional da República Popular da China. A Lei Básica rege a vida política de Hong Kong.

Os movimentos e protestos que ocorreram em Hong Kong, neste ano de 2019, e que tiveram como gatilho a controvérsia sobre a lei de extradição, têm como motivação de fundo o receio de uma parcela dos residentes permanentes de Hong Kong de terem o seu modelo econômico e político descaracterizado após o ano de 2047, quando se completam os 50 anos previstos para a aplicação do princípio “um país, dois sistemas”. Em outras palavras, temem que Hong Kong passe a ser regido por um sistema e políticas socialistas.

Não se pode fazer menoscabo destes receios pois isto significaria ignorar o sentimento desta parcela da população. Até 2047, a população e o governo de Hong Kong terão que exercitar o constante diálogo para enxergar os fatos e os caminhos possíveis para solução destes e outros impasses de maneira mais objetiva. É neste exercício que entra a necessidade de se olhar para a China e para seu modelo de governança não com olhos voltados para o passado, mas para o futuro.

É um assunto eminentemente de política doméstica. Em outras palavras, é um assunto dos chineses e a decisão que tomarem deve ser respeitada por outras nações sob pena destas parecerem desrespeitar a soberania chinesa. O direito internacional tem um princípio básico para a garantia da estabilidade do sistema internacional: trata-se do princípio da não-intervenção externa em assuntos internos. Este princípio é corolário do princípio da soberania e traduz a ideia de que cada país deve respeitar o modelo de governança dos demais países.

E no caso de Hong Kong, além deste princípio de direito internacional, ainda há uma norma de direito interno que afasta qualquer dúvida sobre quem detém a soberania sobre Hong Kong. Diz o artigo 1 da já referida Lei Básica que Hong Kong “é uma parte inalienável da República Popular da China”. Hong Kong é, portanto, território chinês. Logo, a eventual intromissão do governo britânico, do governo dos Estados Unidos ou de qualquer outro governo de outro país nesta questão de Hong Kong será uma evidente violação da norma jurídica internacional e um desrespeito à soberania chinesa.

Desde este ponto de vista, causa perplexidade o fato de ver residentes de Hong Kong empunhando bandeiras da Inglaterra ou dos Estados Unidos para ter destes países um apoio político às suas reivindicações. Estão pedindo a intervenção estrangeira em assunto que é doméstico? Não estariam deixando de assumir as responsabilidades como parte do povo chinês? E este recurso às potências ocidentais é ainda mais grave quando se sabe que não foi a Inglaterra que implementou uma democracia em Hong Kong. 

*O autor é o professor de direito internacional da FGV Direito Rio e da Universidade Federal Fluminense.

(Web editor: Renato Lu, editor)

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